Que amor é esse?

Madu
5 min readDec 11, 2023

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Esses dias reassisti A princesa e o sapo. Cá estou.

Já não devia ser novidade o tamanho do meu carinho por esse filme, mas ainda me surpreendo com o afeto que tenho por ele. Lembro com bastante clareza de ter 10 anos e ir vê-lo no cinema com minha família, sentir que “Titi” parecia um pouco comigo. Já faz 14 anos da primeira vez que a vi e ainda penso a mesma coisa.

Assistir esse filme comigo talvez não seja a melhor experiência do mundo pelo simples e irritante fato de que conheço todas as falas e tendo a repeti-las pela graça — no sentido de graciosidade — do divertimento; algo que uma criança de 6 anos fez questão de me dizer, inclusive. Eu deveria amar muito essa história, caso contrário não retornaria a ela porque “já sei tudo a respeito”.

Com inquietação me perguntei se sabia mesmo alguma coisa sobre, e a questão tomou outros e mais profundos níveis graças a uma cena em particular.

Vamos retomar alguns personagens e contextos: Tiana e Naveen conhecem Ray, um vagalume que os ajuda a voltarem à forma humana, quando estão no pântano à procura de Mama Odie. Esse pequeno ser tem uma namorada chamada Evangeline — que aparentemente nada mais é do que uma estrela, aos olhos dos outros. Inclusive, num momento de angústia, a própria Tiana escancara: “a Evangeline é uma estrela, Ray! Uma grande bola de ar quente a milhões de quilômetros daqui…”.

Nos momentos finais da história, Ray é gravemente ferido pelo Dr. Facilier, o vilão, vindo a morrer logo depois de reencontrar os amigos, olhando para o céu, tendo em seus olhos a imagem da amada. Nas cenas seguintes vemos a família de Ray, Tiana, Naveen e Louis num cortejo fúnebre. É o momento da despedida. O som melancólico do trompete de Louis ressoa ao fundo, e a cor cinza é predominante na tela. Se existe magia no mundo, ela foi esquecida.

O que acontece depois é lindo. Uma luz forte começa a pairar sobre todos os personagens, logo quando uma densa nuvem se afasta, revelando aos olhos algo impressionante. Ao lado da figura de Evangeline, a estrela e companheira de Ray, outro astro acaba de surgir. Parecem dar as mãos — ou pontas, para ser mais literal, e reluzem como nunca. Da tristeza se vai à euforia: então, no final das contas, era verdade.

Mas o que, exatamente?

fonte: Pinterest

Evangeline era outro vagalume? Ray é o único a se referir a ela dessa forma, seria ele uma fonte confiável? Se não, Ray de fato era apaixonado por uma “bola de ar quente”, ao ponto de se tornar como ela depois da morte? Eles eram um casal antes de Evangeline “morrer” — e, afinal, ela morreu mesmo?

Não sou pretensiosa e não quero dar respostas nem criar teorias. Além do mais, penso muito em algo para além dessas dúvidas: que tipo de amor é esse retratado e sentido por um vagalume numa animação infantil e o que ele diz das relações humanas (metamorfoseadas em sapo ou não)?

Foi essa pergunta que me motivou a escrever. Apesar de saber dos elementos romantizados ou questionáveis da construção de um conto de fadas como esse, penso que de alguma forma existe algo sábio por trás daquilo que nos apresentam nesse tipo de conteúdo; ou que pelo menos analisar certos detalhes pode contribuir para nos tornar mais sábios. O amor de Naveen e Tiana é, sem dúvida, o amor romântico das histórias da Disney. Mas e o amor de Ray e Evangeline?

Outra vez: que tipo de amor é esse?

E falando nos humanos-não-transformados-em-sapos que somos, o que é preciso para que também possamos ser capazes de sentir esse tipo de amor? Que tipo de pessoas precisamos nos tornar para que possamos senti-lo?

“Por acaso”, ontem mesmo (11/12/2023) uma pessoa me perguntou como eu definiria o amor. O mais engraçado é que alguns meses antes disso tivemos uma conversa parecida, na qual a minha resposta tinha sido apenas “compromisso”.

Oito meses atrás eu pensava que amor significava comprometimento, uma vez que acreditava que há uma parcela muito grande das nossas escolhas implicada nesse sentimento. Ontem, apesar de não ter mudado de resposta ou de ideia, acrescentei outros dois fatores que considero tão primordiais quanto o primeiro na constituição do amor: aceitação e compreensão. Esses fatores coexistem e são interdependentes, ao meu ver, pois vê-los isoladamente torna cada um frágil e muitas vezes desequilibrado.

Pensando em Ray e Evangeline, imagino que seja fácil achar esses fatores no amor retratado na história, já que embora não se saiba quem ou o quê Evangeline havia sido, o elemento do compromisso existe desde o primeiro instante em que vemos Ray em cena — seja quando ele a chama de namorada, “Ma Belle”, fala do relacionamento deles ou diz que a ama.

Já a compreensão do que quer que tenha acontecido entre eles ou com ela permanece silenciosa e discreta. Ray cultiva uma relação harmoniosa com a figura da estrela, falando com ela e ouvindo sua voz, num movimento que somente ele é capaz de entender. Acredito que esse elemento da compreensão se constitui exatamente pelo fato de que ele pode ouvi-la mesmo quando ninguém mais consegue, além de ser o único a saber a verdadeira história deles. Pensando na dimensão desse amor, o quanto não foi preciso que essa comunicação fosse fortalecida “em vida” (assumindo que os dois eram vagalumes) para que mesmo na diferença (ser estrela e ser vagalume) ainda se pudesse ouvir o outro, lembrá-lo como um apoio e referência de bondade e ajuda?

Por fim, Ray aceita o que quer que Evangeline seja ou tenha sido. Ray aceita a separação e a diferença que por bastante tempo foi evidente entre os dois, e aceita também o fato de que os outros não compreendem sua posição diante desse fato. Quando Tiana explode e diz que Evangeline não é mais do que uma bola, o próprio Ray a justifica (para a estrela): “ela fala assim porque tá triste”.

Se Ray é capaz de aceitar que outra pessoa não entenda sua relação no modo em que ela se manifesta, isso acontece porque ele ama e sabe que amando tem conhecimento da verdade.

Talvez o amor seja também isso — a verdade. Ou talvez ser verdadeiro é o que precisamos nos tornar cada vez mais em nome de sentir “que amor é esse” e praticá-lo com devoção. Talvez somente o amor verdadeiro, não como nos dizem os filmes e romances, mas o amor pautado no conhecimento de si e do outro como seres únicos e entrelaçados no cosmos seja capaz de nos fazer encontrar vagalumes entre as estrelas e estrelas entre pessoas.

Que o amor assim sejamos nós, no fim de tudo.

fonte: Pinterest

Madu, Evangeline e Ray.

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Madu

Pernambucana, aspirante a escritora, nas nuances da transformação. Na mira do amor e da dor.