O percurso do amor

Madu
5 min readMay 12, 2023

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Tudo por amor é ridículo. Qualquer gesto que se traje de amor é carregado de um cinismo que todos nós consideramos belo. E esse cinismo é patético, não importa quem o use. No entanto, e que os deuses em toda sua benevolência me perdoem, nada é mais ridículo do que um ser humano. Nem mesmo deus.

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Há pelo menos cinco anos eu não me considerava mais religiosa. Embora houvesse resquícios e maus hábitos do meu tempo cristão ainda operando nos meus gestos e na minha personalidade, eu sabia com muita certeza de que jamais teria sido feliz se tivesse continuado na igreja — aliás, qualquer uma delas, se eu tivesse tido a coragem de assumir outra apesar daquela na qual fui introduzida. Fui criada num catolicismo simples e padronizado, com missas aos domingos e as iniciações costumeiras para ser considerada um membro da egrégora. Mas a verdade é que nunca consegui ver Deus como um pai, nem Maria como uma mãe ou qualquer santo como um amigo com o qual eu pudesse contar num momento de aflição. Eu não sabia lidar bem com o que eu não conseguia ver, não por falta de fé (como normalmente gostam de colocar quando você tem dúvidas das quais ninguém mais tem uma resposta satisfatória), mas porque a realidade era brutal demais para que eu fosse capaz de me abandonar nesse abismo que chamavam de “amor de Deus”. No começo, até talvez os meus dezessete anos, sempre que algo traumático ou violento me acontecia eu corria para os braços invisíveis dessas figuras e esperava algum tipo de acalento que nunca vinha. A verdade é que a existência de Deus na minha vida nunca foi sinônimo de conforto, mas sim a impressão e marca de uma falta. Eu não encontrava repouso nesse ser invisível, que ao mesmo tempo que me amava me punia por eu não ser boa o suficiente. Eu não conseguia ver a bondade dele no mundo quando todos os dias eu acordava e via as piores tragédias escorrendo pelas paredes do meu quarto, da minha casa ou dos lugares por onde meus pés passavam. Esse foi o primeiro passo que eu dei em direção ao oceano infindável de coisas que seriam perdidas e deixadas para trás enquanto eu desenvolvia minha consciência. Foi nesse momento também que a repulsa começou: Deus parecia o vilão em todas as minhas fantasias, e nem mesmo minha maior força e fraqueza, na mesma proporção, que é exatamente o fato de que eu tento tornar tudo que vejo o mais belo e amável possível, foi capaz de salvá-lo do meu julgamento consciente. Às vezes contra a minha vontade eu olhava com ternura para cada coisa que se apresentava à minha frente, mesmo quando havia agonia e sangue escorrendo dos meus lábios cada vez que eu proclamava qualquer boa sentença, bendizendo o máximo de elementos possíveis sobre o que quer que fosse. Eu sorria e esperava pelo próximo momento onde poderia doar cada vez mais de mim para isso continuar acontecendo. Nem isso foi capaz de salvar Deus de mim mesma.

A segunda etapa desse processo consistiu na busca por outra coisa, algo que eu não fui capaz de achar em Deus. Procurei outras doutrinas, outras filosofias, outros mestres que me dissessem qual era a verdade que aquela falta tinha me roubado. Eles me encheram das mais belas poesias e ideias de luz e amor, e por um tempo isso pareceu responder satisfatoriamente meu coração. A culpa cristã perdia cada vez mais a sua força porque não havia motivo para culpa. Não seria da vergonha de ter sido uma pecadora — será que um dia fui? — que eu me tornaria um ser humano melhor, mais amoroso e compassivo, mas sim da gentileza de me tratar como um ser humano exatamente por causa dessas coisas feias que elencamos sobre nós mesmos com tanta veemência. Foi nessa ruptura que pensei que poderia finalmente aprender a amar, sobretudo amar a mim mesma, a quem um dia fui ensinada a rejeitar em prol de alguém tão maior do que eu que não parecia ter tempo de voltar seu onipotente olhar para minhas dores.

Agora faz exatamente um ano que isso deixou de me preencher também. Diferente do que eu achava que tinha acontecido na primeira etapa (que Deus havia me abandonado e por causa disso eu resolvi deixar tudo que me remetia a ele para trás), era eu quem escolhia ir embora. Aquela aura etérea e aconchegante que eu tinha encontrado no caminho tinha se dissipado por completo, mas isso não me assustava. Eu sabia que tinha amado e sido completamente ridícula por causa disso no meio do processo, então que mal fazia partir de mãos vazias se agora eu sabia amar melhor do que Deus durante toda minha vida?

O amor torna a todos nós ridículos, e nisso está a beleza de amar. Até mesmo aquilo que fazemos pensando que é amor pode se revelar tudo menos isso. Mas se houver o menor resquício de ridicularidade nas entranhas dos nossos gestos (esses que classificamos como amor) significa dizer que estamos um passo mais perto de conhecer a verdadeira face desse amor que tanto idealizamos. Não consigo imaginar nenhum deus sendo ridículo por amor porque isso seria contra sua natureza perfeita e impecável. Por outro lado, quanto mais vejo a face humana verdadeira, em todos os seus egoísmos, medos, imperfeições, e acima de tudo em sua tentativa de ser algo a mais ou melhor para si e para os outros, vejo um espelho que beira o infinito de possibilidades de amar.

É por isso que a terceira etapa dessa trajetória de viver é aprender a amar como um ser humano — mas um que se esforça para amar mais e melhor. Um cuja religião são atos de bondade e compaixão mesmo que esse corpo que ama seja atravessado pelo caos de uma existência incerta, farta em dúvidas, e mesmo em face às piores injustiças. Um ser humano que, sem as vestimentas da culpa, pode ver o próprio reflexo nos olhos da mudança e não temer ceder suas mãos à ela, porque como verdadeira mestre e guia ela ensina mais do que os grilhões estáticos de um pecado mais antigo que o tempo.

Amor e mudança são atemporais, e nós, inseridos nas vísceras das duas coisas, somos eternos no agora em que mudamos e amamos a mudança do amor.

Madu, outono de 2023

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Madu

Pernambucana, aspirante a escritora, nas nuances da transformação. Na mira do amor e da dor.